O que lembro em relação a minha audição quando entrei na escola é que eu já não ouvia direito, e também não tinha olfato. Naquele tempo, os pais não levavam as crianças aos médicos, então não foi possível diagnosticar a causa da minha perda auditiva e olfativa. Na escola, comecei a perceber que tinha medo de andar no escuro. Mas naquele tempo eu não imaginava que já era o começo da perda visual, estava começando a cegueira noturna. Com 17 anos me mudei para São Paulo, fiz o tratamento do nariz e ouvido e então ganhei o meu primeiro aparelho auditivo.
Como tinha parado de estudar no primário e queria muito voltar, com o uso do aparelho consegui terminar meus estudos no Ensino Fundamental. Nessa época comecei a procurar emprego, trabalhei em alguns serviços, mas não conseguia ficar por muito tempo nas empresas por causa da deficiência auditiva. Sempre gostei de estudar e aprender coisas novas e na tentativa de melhorar meu currículo, fui atrás de cursos. Foi então que percebi o começo da minha perda visual, pois tive dificuldades para acompanhar os cursos porque já não enxergava perfeitamente e nessa época não tínhamos cursos acessíveis para cegos e pessoas com baixa visão. Nesse período o único trabalho que consegui atuar foi como revendedora de produtos de beleza, porque não sofria discriminação, e minha simpatia e espontaneidade me ajudavam nas vendas.
O que gostaria enfatizar nesse relato é que naquela época não tínhamos conhecimento das deficiências (há aproximadamente 60 anos) e não se procurava ajuda. Mesmo hoje em dia, com o avanço que tivemos nos serviços para pessoas com deficiência, muitos pais ainda não sabem como lidar com seus filhos e como ajudá-los. Minha intenção sempre foi dar o exemplo, de uma vida em que não tive facilidades, mas que com resiliência, consegui viver como uma pessoa comum: me casei, tive meu filho. A surdocegueira nunca foi um fator limitador para eu seguir minha vida, foi sim um fator que dificultou, mas não me impediu, mesmo quando perdi toda a visão, que foi por volta do ano 2008. Desde então convivo com a cegueira total e deficiência auditiva, sou surdocega.
Nessa minha jornada pelas instituições e escolas aprendi muito, mas o que mais me ajudou foi o convívio com as pessoas. Eu sempre gostei de estar com pessoas, acredito que a convivência e troca de experiências é o que fortalece o ser humano, e não estou falando de pessoas com deficiências, estou falando de qualquer pessoa. Hoje, a acessibilidade está bem avançada perto de quando eu era jovem e o trabalho dos guias intérpretes é fundamental para os surdocegos. Apesar de eu ser bem independente, necessito também do guia intérprete, sou surdocega e em muitas situações não consigo participar ativamente se não for a ajuda desse profissional.
Sou uma pessoa que não consegue ficar parada esperando que as coisas aconteçam, sempre fui atrás de meus objetivos, mesmo com todas as dificuldades nunca me deixei abater, mesmo não tendo ajuda da família (não porque não queriam ajudar, mas porque nem sabiam como ajudar em muitas ocasiões), continuei no meu trabalho como vendedora e ao mesmo tempo conheci alguns serviços que atendiam as pessoas com surdocegueira. Nessas instituições, me especializei em padaria, sou artesã (faço esculturas em argila), sou intérprete de dança (participo de apresentações de dança inclusiva), e sou consultora em audiodescrição (fiz trabalhos de consultoria para profissionais de audiodescrição).
Em relação a educação, no começo da minha vida, quando as deficiências começaram a se manifestar, como já relatei, tive dificuldades para continuar meus estudos. Nunca desisti e hoje com 65 anos ainda estou estudando, faço o Curso Supletivo (ensino à distância) para me formar no Ensino Médio e se possível quero fazer ainda uma faculdade de psicologia, porque acredito que com minha experiência e com conhecimento posso ajudar ainda mais outras pessoas. Já faço um pouco desse trabalho no meu dia-a-dia, sempre que posso converso com as pessoas tentando fazer com que elas se sintam bem, sempre levo meu bom humor e positividade para minhas conversas, e recebo muito feedback que sou uma pessoa espontânea, autêntica e carinhosa.
Como na maioria das culturas, a mulher precisa fazer um esforço maior para conquistar seu espaço. Comigo não foi diferente, mas também nunca foi um impedimento. Como mulher e mãe, segui meu caminho trabalhando e cuidando da casa e filho, mesmo depois de ficar viúva, nunca precisei depender de ninguém para me manter, não digo que foi uma vida fácil, ainda não é, mas não posso reclamar porque tenho muitos amigos e pessoas queridas que me ajudaram nessa caminhada. Sempre me senti empoderada (guerreira), fui e sou uma mulher que luto por meus direitos como cidadã, como surdocega e como pessoa no geral.
Gostaria de apresentar um trabalho que faço no momento e que pode exemplificar a jornada da minha vida. O empoderamento que tive desde menina e que nunca parei de lutar para sempre estar evoluindo e nessa jornada, ajudar as pessoas ao meu redor.
Iniciei na dança no ano de 2006, na Oficina de Dança Inclusiva do Grupo Brasil (Grupo de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo Deficiente Sensorial) – São Paulo – Brasil, com dança educativa moderna e contemporânea. Depois, passei a ser assistente de sala de aula, auxiliando alunos com um grau maior de dificuldade no Projeto Arteiros – Dança Inclusiva, com a professora Daniella Forchetti. Em seguida me tornei voluntária no curso de formação para professores em Dança Educativa e Inclusiva, também com a professora Daniella Forchetti.
Faço parte do DiDanDa – Grupo Experimental de Dança. Realizamos apresentações em Congressos, Exposições, Virada Cultural Inclusiva e na Feira de Reabilitação e Tecnologia – REATECH. Meu maior trabalho foi em 2016 e 2017 contribuindo no grupo DiDanDa, realizando um trabalho de arte híbrida. Em parceria com a Oficina de Cerâmica da Professora Vera Luz Almeida Silva na Instituição ADEFAV, fiz esculturas baseadas no movimento das dançarinas-intérpretes. A partir desse trabalho, montamos uma exposição sensorial, com imagens em baixo-relevo e em contraste, com texturas, poesia e cheiros para que outras pessoas com deficiências pudessem se beneficiar através da abordagem multissensorial. Fizemos um mês de temporada no Memorial da Inclusão, lugar de referência no Brasil, pois faz parte da Secretaria da Pessoa com Deficiência e representa um local da luta da pessoa com deficiência.
A apresentação de dança e a exposição intitularam: “3X4: A menina do retrato”, e representava a vida da personagem que era vivida por quatro intérpretes dançarinas, eu vivi a fase idosa. Nesta apresentação tínhamos a audiodescrição, mediadora e uma intérprete de Libras integrada no espetáculo. Ajudei como consultora em audiodescrição, sendo a primeira surdocega no mundo que temos notícia a exercer esse trabalho, que é feito em sua maioria apenas por pessoas cegas e com baixa-visão.
Aprendi muito em todo esse tempo, consegui me especializar em panificação, escultura e dança e hoje posso contribuir de alguma forma para o empoderamento do outros surdocegos, ajudá-los em suas jornadas para ter uma vida sustentável, compartilhando meu conhecimento e minha experiência.